Um futuro sustentável deve incluir pessoas negras
Texto publicado originalmente em: https://gamarevista.uol.com.br/colunistas/observatorio-da-branquitude/um-futuro-sustentavel-deve-incluir-pessoas-negras/
Comunidades quilombolas e negras lutam para não serem enterradas pela instalação de linhas de transmissão em seus territórios
No Carnaval de 2018, a Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, cantou: “Morri nos canaviais onde se plantava gente”. Ou seja, as vidas pretas serviam de adubo para que homens brancos pudessem fumar seus charutos no Brasil colônia. Esse método supremacista persiste ainda hoje, vidas pretas são ceifadas para manter um crescimento econômico nas mãos de poucos. É possível observar essa dinâmica em diferentes campos e aqui falo sobre como isso acontece no sistema de transmissão de energia que abastece o país — quando territórios quilombolas e pretos recebem linhas de transmissão que afetam a vida das pessoas, saúde, dignidade, o sustento.
Trata-se de uma lógica que coloca o povo preto e suas tradições como um detalhe a ser removido, transformando algo inquestionavelmente positivo para o planeta e para humanidade, que é o aumento da capacidade instalada de energias renováveis, como mais um mácula na história do povo preto no Brasil. Não podemos seguir com um modelo de desenvolvimento econômico que usa um modus operandi racista, que coloca as pessoas, seus recursos de sobrevivência, tradições e territórios como descartáveis. O futuro sustentável que precisamos construir, deve incluir as pessoas pretas nele.
As Linhas de Transmissão (LT) integram o setor de produção e transmissão de energia elétrica no Brasil, que é um sistema complexo, de grande porte e abastecido por uma matriz hidro-eólica-térmica, de acordo com o Operador Nacional do Sistema. O Sistema Integrado Nacional é composto por quatro subsistemas: Nordeste, Norte, Sudeste/Centro Oeste e Sul. Esses realizam um intercâmbio de energia, por meio de uma malha de transmissão de energia que conecta os subsistemas com LTs que interligam as unidades geradoras aos grandes consumidores (alta tensão) e distribuidoras de energia. Dessa forma, as LTs transportam energia por longas distâncias, integrando os elementos do sistema. As LTs são vitais para o setor, pois ocupam uma posição estratégica num sistema composto por quatro etapas principais: geração, transmissão, distribuição e consumo.
Apesar do planejamento e estudo terem sido apontados como o cerne do setor elétrico brasileiro, as comunidades tradicionais parecem não ter sido incluídas. No Nordeste brasileiro, comunidades quilombolas e negras lutam para “não serem enterradas” vivenciam — não sem protestar — a instalação das LTs em seus territórios. As implantações estão sendo questionadas porque os trâmites legais estão sendo cumpridos parcialmente, tais como a consulta prévia, livre e informada antes da instalação como preconiza a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho, um tratado internacional sobre o direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais que concerne a necessidade de consultar os grupos citados quando medidas administrativa afetem seus territórios. O Brasil ratificou a convenção em 2002 e passou a valer por aqui em 2003, por isso o estado é legalmente obrigado a seguir.
Um dos objetos desse questionamento, é a LT 500 kv Porto Sergipe/Sapeaçu, que tem 363,5 quilômetros de extensão, de Sergipe a Bahia . Ela faz parte de um projeto estatal de expansão do setor elétrico. Essa linha tem início no litoral sergipano e se estende até o recôncavo baiano, passando por comunidades tradicionais.
O processo de construção e instalação dessa linha, é apontado como um atentado à soberania territorial das comunidades. Além da ausência dos procedimentos mencionados acima, a Comunidade Quilombola de Lagoa Grande não foi incluída em estudos ambientais, o que viola tratados internacionais. Em uma publicação de julho de 2024, o Ministério Público Federal informou que moveu uma ação civil pública com o objetivo de reparar os danos causados às comunidades remanescentes na Bahia que são vítimas dessa instalação. Esse posicionamento é uma resposta importante, mas as medidas precisam ser tomadas antes das instalações.
Ainda no Nordeste, a LT 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro possui aproximadamente 130 quilômetros de extensão e intercepta nove municípios em Pernambuco e seis na Paraíba, com o objetivo de estabelecer um intercâmbio para o Brasil. Assim, como a LT da BA-SE, não foi realizada a consulta prévia, livre e informada. Uma pesquisa realizada por Camila Lima e Luís Fernando Soares aponta que a instalação das LTs pode provocar problemas como fragmentação da vegetação, depressão, cardiopatias. Além disso, há o fato da instalação ser uma forma continuada de controle do território.
Outras denúncias foram registradas em comunidades dos estados do Pará e do Paraná, consolidando relatos de problemas socioambientais em comunidades tradicionais, que não foram consultadas como preconiza a convenção OIT 169, em quase todas as regiões do país. As LTs estão afastando as raízes históricas dessas comunidades, aprofundando conflitos historicamente construídos e ampliando o controle territorial nas mãos do capital branco.
Pensar em descarbonização do sistema de energia e no aumento da capacidade instalada não orna com os atos citados, pois esses estão alinhados com um modelo supremacista, de expansão e controle territorial. O que está ocorrendo é a perpetuação de um modelo de país que segue uma cartilha colonial, ao privilegiar o capital branco em detrimento dos interesses sociais. Para isso as pessoas, os territórios e as florestas são considerados como vilões da economia. É um modelo que não coexiste com o ser humano e nem com a natureza.
Olhar para o setor elétrico brasileiro nesse momento é uma maneira de analisar qual caminho estamos construindo para uma transição energética justa, que deve colocar no cerne os interesses e necessidades dos povos vulneráveis. E neste momento, quando o G20 discute mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável e a COP 29 discute estratégias de adaptação às mudanças climáticas, é necessário incluir as comunidades tradicionais e suas necessidades no debate.
Autora: Monique Borges é mestranda em Engenharia Industrial na UFBA. Pós-graduada e graduada em Engenharia da Produção com MBA em Gestão Financeira e Controladoria. Atua em negócios de impacto social corporativos. No Observatório da Branquitude, é analista financeira.