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Entre Ancestralidade e Justiça: A Resistência Negra e Feminina contra a Transição Energética Predatória

Entre Ancestralidade e Justiça: A Resistência Negra e Feminina contra a Transição Energética Predatória

Recife, 04 de junho de 2025 — Em face da expansão vertiginosa de usinas eólicas e linhas de transmissão em Pernambuco, a Associação Sítio Ágatha promoveu, entre fevereiro e abril, três encontros que entrelaçam saberes ancestrais, diagnósticos jurídicos e análises críticas da transição energética no Brasil e na América Latina. O objetivo foi articular práticas de consulta autônoma, expor os mecanismos de servidão administrativa e desconstruir a retórica da “energia limpa”, lançando as bases para uma resistência comunitária.

A oficina de 13 de fevereiro, conduzida por Joanna Barney (INDEPAZ), aprofundou-se no protocolo autônomo construído pelo povo Wayuu, em La Guajira, Colômbia. Ao apresentar suas bases, Barney destacou quatro pilares: o mapeamento de territórios sagrados, a elaboração de genealogias matrilineares — reafirmando o papel central das mulheres na proteção dos bens comuns —, a definição de critérios próprios para interlocução com agentes externos e a formulação de estratégias coletivas de resistência. Inspirado por esse modelo, o Sítio Ágatha busca adaptá-lo para garantir que mulheres negras rurais, historicamente marginalizadas, ocupem posição central nos processos de licenciamento ambiental e na disputa por autodeterminação territorial.

No debate de 10 de abril, o advogado e integrante do grupo de pesquisa Dom Quixote, Marciel Antônio de Sales (UFPB) revelou como decretos de meados da década de 1940 embasam a imposição de servidão administrativa sem consulta efetiva — instrumento que recai de forma desproporcional sobre pequenos proprietários negros e mulheres agricultoras. “Utilidade pública não é sinônimo de justiça social”, criticou Sales, ao mostrar que mais de 20 ações judiciais em cinco meses fragmentaram comunidades do semiárido paraibano e aprofundaram desigualdades raciais e de gênero.

No encontro de 29 de abril, participaram as pesquisadoras Marcela Torres Wong (FLACSO) do México e Gislene Moreira Gómez (UEB). Segundo Torres Wong, estudos de cooperativas no Istmo de Tehuantepec, no México, apontam que apenas 28% da energia produzida beneficia as comunidades; o restante sustenta grandes indústrias e drena recursos locais. Por sua vez, Moreira Gómez desconstruiu a narrativa de “energia limpa” e denunciou o ataque sistemático à Caatinga — bioma de alta biodiversidade que tem sido tratado como deserto e dilacerado para erguer torres eólicas. No sertão baiano, quilombolas e assentados relatam criminalização de lideranças femininas negras que exigem transparência e participação na gestão dos projetos. Casos de ações judiciais contra Électricité de France (EDF), a maior produtora e distribuidora de energia da França, e mineradoras no Reino Unido ilustram o potencial de alianças globais na defesa de territórios e biomas ameaçados.

A convergência dessas três experiências — protocolos autônomos que elevam vozes negras, indígenas e femininas, contestação da servidão administrativa e crítica ao modelo de transição energética — oferece ao Sítio Ágatha um repertório estratégico. Ao integrar conhecimento ancestral, assessoria jurídica e solidariedade internacional, a comunidade fortalece sua capacidade de resistência e propõe um caminho para uma justiça socioambiental profunda e duradoura.

Em um cenário marcado pela intensificação do colonialismo energético sob a fachada da transição verde, as experiências compartilhadas nos encontros promovidos pela Associação Sítio Ágatha evidenciam que resistir é também reinventar formas de habitar, decidir e proteger os territórios. Ao articular saberes ancestrais, estratégias jurídicas e alianças latino-americanas, mulheres negras agricultoras e comunidades periféricas demonstram que outra transição energética é possível — uma que não se funde na expropriação, mas na justiça, no cuidado e na soberania popular. Essa luta, enraizada em práticas de escuta, memória e denúncia, afirma que o futuro será ancestral.

Texto: Luis Soares

Revisão: Gus Cabrera

Arte: Diego Amorim

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