
Territórios sob tensão: Direitos e Linhas de Transmissão de Energia Eólica
No contexto da série Territórios em Resistência, o Sítio Ágatha propõe uma escuta ativa e pedagógica sobre os direitos de agricultoras e agricultores frente à instalação de linhas de transmissão de energia elétrica nos territórios rurais. Em parceria com o advogado Marciel Sales, esta entrevista busca responder perguntas frequentes de comunidades que têm enfrentado a chegada de grandes empreendimentos energéticos, muitas vezes sem informação, consulta ou respeito à sua organização social.
Marciel Sales é doutorando em Ciências Jurídicas da UFPB, mestre em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), com formação em Contabilidade e Direito, membro do projeto Dom Quixote e conta com uma ampla trajetória na docência e assessoria jurídica. Sua prática une experiência de vida, atuação institucional e compromisso com a justiça social. Com uma linguagem acessível e firme, ele esclarece, nesta conversa, os mecanismos legais que regem as linhas de transmissão e orienta formas de resistência coletiva diante do que chamamos de colonialismo energético.

10 perguntas sobre linhas de transmissão de energia elétrica para quem vive e resiste no campo com advogado Marciel:
1) Marciel, por que tantas linhas de transmissão de energia elétrica estão sendo construídas nas áreas rurais e assentamentos da reforma agrária? O que está por trás dessa pressa?
Por um motivo simples. O cálculo das indenizações das áreas afetadas leva em consideração as benfeitorias existentes nos locais por onde e sobre os quais passam as redes de transmissão. Quanto menos benfeitorias, menores os valores das indenizações, além de que as pequenas propriedades rurais, inclusive as áreas de assentamentos, apresentam menor valor de mercado, relativamente. Estamos vivenciando o momento da transição energética em decorrência das mudanças climáticas. Essa é a justificativa dos governos para a pressa na estruturação de todos os mecanismos exploratórios de novas fontes de energia, inclusive a construção de linhas de transmissão. Entretanto, existe um motivo que tem sido objeto de estudo e que, à minha ótica, explica o processo açodado de transição. A necessidade de rentabilização rápida do capital rentista, principalmente internacional.
2) Quando uma empresa chega dizendo que vai passar uma linha de transmissão na terra da gente, o que podemos fazer? Temos direito de recusar?
No Brasil, a constituição de servidão administrativa é precedida da declaração de utilidade pública da área, conforme previsto na atual legislação. Uma vez declarada a utilidade pública, que é antecedida de um estudo de viabilidade técnica e econômica, realizado pelas empresas interessadas na exploração energética, não se pode questionar os seus termos, inclusive judicialmente. Infelizmente não existe previsão legal para um procedimento de recusa formal. O que pode ser questionado é apenas o valor da indenização, que é fixado inicialmente de forma unilateral pelas empresas.
3) O que é a consulta prévia, livre e informada? Esse direito se aplica às famílias agricultoras e comunidades rurais também?
A consulta prévia, livre e informada tem base na Convenção da OIT n.º 169, da qual o Brasil é signatário. É um instrumento fundamental em favor de povos indígenas, comunidades tradicionais e outros grupos que têm seus territórios afetados por atividades econômicas de grande impacto, como são as linhas de transmissão de energia elétrica. As comunidades rurais, formadas por conglomerados de pequenas propriedades, principalmente no semiárido, têm suas culturas e tradições próprias, que devem ser respeitadas. Desse modo, entendo que todas as comunidades devem ser consultadas previamente, de forma livre e amplamente informadas das vantagens e, destacadamente, das desvantagens.
4) E se a empresa disser que vai pagar uma indenização: como saber se o valor é justo? A comunidade pode negociar ou recusar a proposta?
A metodologia usada para o cálculo das indenizações é complexa. Desse modo, para saber se o valor é justo, deve sempre se consultar um especialista na área, preferencialmente um engenheiro agrônomo. Todavia, considero que a metodologia definida no Decreto-lei n.º 3.365/1941 é obsoleta, uma vez que não contempla alguns aspectos que devem ser levados em consideração atualmente, como os impactos que podem ser ocasionados sobre a cultura, modo de vida, atividades econômicas das comunidades tradicionais locais. As comunidades não são convidadas para participarem do processo de avaliação dessas áreas, justamente pelo fato de inexistir previsão legal. Todavia, organizadas e coletivamente, devem negociar e, se for o caso, recusarem os valores ofertados pelas empresas, o que não impedirá a instalação das torres e linhas de transmissão, mas possibilitará a discussão judicial.
5) No caso dos assentamentos da reforma agrária, onde a terra é coletiva, como funciona a autorização? O INCRA pode decidir sem ouvir quem mora e planta ali?
O INCRA deve ser convidado para participar do processo de estudo técnico e econômico e ouvido antes da emissão da declaração de utilidade pública pela ANEEL. Nesses casos, considerando a posse coletiva da terra, o INCRA deve ouvir as comunidades e mensurar os impactos provocados pela afetação das áreas ocasionados pela instalação das torres e das linhas de transmissão. Tudo isso deve ocorrer previamente à declaração de utilidade pública.
6) O que significa “servidão administrativa” no caso das linhas de transmissão? É verdade que a empresa pode usar a terra alheia mesmo contra a vontade do dono ou da comunidade?
Sim. Independentemente da vontade e do consentimento dos proprietários, as torres e linhas de transmissão podem ser construídas em suas terras, instaurando-se a servidão administrativa, que é basicamente o instituto jurídico que obriga bens particulares à servirem por tempo indeterminado a determinado interesse público, mediante indenização. A servidão administrativa é posterior a emissão da declaração de utilidade pública, que é publicização do interesse público sobre o interesse particular.
7) O discurso de que essas obras são de “utilidade pública” tem sido usado pelas empresas. Isso dá a elas o direito de atropelar os direitos das famílias do campo?
A análise de casos em determinadas localidades tem demonstrado que a declaração de utilidade pública tem sido usada pelas empresas que exploram o mercado de energias renováveis, principalmente no Semiárido, considerando sua formação populacional e suas peculiaridades geográficas, sociais e econômicas, como instrumento de desapossamento dessas comunidades. Não há direito nenhum em favor dessas empresas, que se baseiam em uma legislação criada para e em um determinado contexto histórico totalmente diverso do atual, fazerem uso desvirtuado desses dispositivos, contrariando o que prega a Constituição de 1988.
8) Quais são os impactos reais que você tem visto nos territórios onde passam essas linhas? O que muda na produção, na saúde, no ambiente e na vida das mulheres do campo?
Os impactos são severos e permanentes. As áreas afetadas pela construção das torres e linhas de transmissão de energia elétrica provocam severa restrição ao uso das pequenas propriedades, típicas do semiárido. Isso implica na impossibilidade de exploração de culturas de subsistência, como milho, feijão, e criação de pequenos animais nessas áreas. Há estudos científicos, inclusive internacionais, que comprovam que a exposição as ondas eletromagnéticas causam algumas doenças, como câncer e alterações do ritmo cardíaco. As mulheres, segundo demonstram os estudos, são as mais afetadas, principalmente no período de gestação, por exemplo.
9) Se a comunidade descobre que vai ser atingida por uma linha de transmissão, o que deve fazer primeiro? Existe algum caminho coletivo e legal para resistir?
Defendo que as comunidades devem participar do processo de Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica, previsto no artigo 2º da Resolução Normativa ANEEL n.º 919/2021. Nesses casos, as comunidades devem, coletivamente organizadas, buscarem apoio em órgãos de defesa de seus interesses, como a defensoria pública e o ministério público, buscando sua participação na realização do EVTE. Após essa etapa, ou seja, uma vez declarada a utilidade pública, as possibilidades de resistência ficam limitadas e condicionadas à comprovação de efetivos danos coletivos.
10) Pra encerrar: Quem são os verdadeiros donos dessas empresas que se dizem sustentáveis? Que interesses estão por trás dessas linhas que cortam o nosso chão?
Essas empresas têm em sua composição acionária, capital de conglomerados econômicos majoritariamente internacionais. São fundos de pensão, instituições financeiras privadas, que patrocinam a exploração de novas fontes de energia “limpa”, como a fonte eólica, decorrente da exploração do potencial dos ventos do semiárido brasileiro. Essa, segundo estudos, é a nova fronteira capitalista. Nesse contexto, apropriando-se do discurso da transição energética, supostamente acelerada pelas mudanças climáticas, o capital rentista se dedica a sua multiplicação, por meio da financeirização da exploração de bens comuns, como o potencial eólico do semiárido brasileiro.
Entrevista: Luis Soares
Revisão: Gustavo Cabrera