
Raquel Lyra e a Transação Energética: Quando a Sustentabilidade Ambiental Vira Negócio
A expansão da geração de energia renovável em Pernambuco tem sido apresentada como um passo fundamental para um futuro mais sustentável, impulsionada por políticas de incentivo e pelo discurso da transição energética. No entanto, essa transformação tem ocorrido à revelia das populações diretamente impactadas, especialmente nas áreas rurais e comunidades tradicionais, que enfrentam os efeitos mais severos da implantação de complexos eólicos e solares. Além dos aerogeradores e painéis que modificam a paisagem e limitam o uso da terra, as linhas de transmissão cortam territórios, alteram ecossistemas e afetam drasticamente a qualidade de vida local.
O que deveria ser uma transição energética justa tem se revelado, na prática, aquilo que organizações sociais e movimentos como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) vêm denunciando como uma verdadeira transação energética. Trata-se de um processo em que os territórios de comunidades camponesas, quilombolas e indígenas são negociados sem seu consentimento, em nome dos interesses das grandes corporações do setor energético. Esse modelo, apresentado como “verde”, nada mais é do que a continuidade de uma lógica colonial que desloca populações, concentra riquezas e transforma a energia renovável em mais uma commodity voltada à acumulação de lucro privado.

Caetés (PE) – 17 de março de 2025.
Apesar do impacto profundo dessas infraestruturas, o governo estadual tem conduzido o processo de regulamentação sem garantir um espaço real de escuta e decisão às comunidades afetadas. A criação do Grupo de Trabalho de Licenciamento Socioambiental para Energias Renováveis (GTLSER) foi anunciada como um passo em direção à participação social, mas sua composição refletiu um desequilíbrio estrutural que favoreceu os interesses empresariais. Enquanto apenas um assento foi inicialmente destinado a sociedade civil organizada, três foram reservados para representantes do setor energético, e o restante distribuído entre órgãos governamentais. Essa estrutura desigual resultou em críticas contundentes de organizações como a Associação Sítio Ágatha, Nordeste Potência, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Cáritas, que denunciaram a predominância das corporações na definição das regras do jogo.
Governo Raquel Lyra: Sustentabilidade Econômica para uns, Devastação para outros
A governadora Raquel Lyra tem sido agente na implementação dessa lógica de transação energética no estado sem salvaguardas pactuadas com as comunidades atingidas. Em vez de estabelecer mecanismos de consulta e participação efetiva, seu governo reforça um modelo de desenvolvimento baseado na concentração de poder e na entrega dos territórios às grandes empresas do setor elétrico. Essa postura não apenas compromete a justiça socioambiental, mas também perpetua um colonialismo energético, onde comunidades são expropriadas em nome de um progresso que nunca chega para elas.
A falta de paridade na composição do GT não foi um mero detalhe burocrático, mas um reflexo dessa lógica de exclusão. As comunidades camponesas, indígenas e quilombolas, que há décadas resistem à grilagem de terras e ao avanço de grandes empreendimentos sobre seus territórios, agora enfrentam uma nova ofensiva, travestida de transição energética. O governo Raquel Lyra, que se vende como inovador e sustentável, na prática, reedita velhas dinâmicas de exploração, silenciando os verdadeiros afetados e beneficiando os mesmos grupos econômicos de sempre (Freitas, 2024). Enquanto isso, a energia flui para grandes centros urbanos e indústrias, e o que sobra para as comunidades atingidas é o rastro de destruição total das comunidades.
A falta de participação das comunidades no processo decisório levou a protestos. Em 10 de abril de 2024, moradores de Sobradinho, Lagoa da Jurema, Pontais, Laguinha, Pau Ferro e Barroca ocuparam uma reunião do GT na Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDEC), em Recife. Eles exigiram a suspensão dos licenciamentos de projetos eólicos que desrespeitam seus direitos, indenizações justas e reparação dos danos ambientais e à saúde das famílias impactadas. O protesto também denunciou a profunda desproporção na composição do GT.
Diante dessas denúncias, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), através da promotora de Justiça Belize Câmara, apresentou sugestões para aprimorar a regulamentação proposta pela Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH). Entre as propostas estavam a separação das regras para licenciamento de energia eólica e solar, a ampliação do prazo de funcionamento do GT para permitir um debate mais aprofundado e a obrigatoriedade de consultas prévias às comunidades, em conformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No entanto, essas recomendações não foram incorporadas, evidenciando a manutenção de um modelo que privilegia os interesses econômicos em detrimento da participação popular.
A falta de transparência na condução das discussões dentro do Grupo de Trabalho (GT) agravou ainda mais a situação. Não houve comunicação pública sobre os encaminhamentos finais, e as contribuições da sociedade civil organizada foram negligenciadas antes da publicação da Instrução Normativa (IN). Esse conjunto de normativas, responsável por regulamentar o licenciamento de empreendimentos de energia eólica e solar no estado, foi publicado sem garantir salvaguardas mínimas para as comunidades afetadas.
De forma alarmante — e, pode-se dizer, criminosa — a IN omitiu a estipulação de um limite mínimo de distância entre as instalações eólicas e solares e as áreas residenciais das comunidades tradicionais. O cenário atual levanta sérias preocupações. A ausência de um limite mínimo de distância, como os 2 km que haviam sido propostos inicialmente pelo conjunto da sociedade civil que se fez presente, cria um ambiente onde os interesses econômicos das grandes corporações energéticas podem se sobrepor às garantias básicas de segurança e bem-estar das comunidades locais. Isso não apenas aumenta os riscos de impactos ambientais severos, mas também amplia os conflitos territoriais e a vulnerabilidade social dos povos indígenas, quilombolas e camponeses.
A governadora Raquel Lyra carrega a responsabilidade direta por essa situação alarmante. Seu governo se apropria do discurso da sustentabilidade enquanto impõe uma política energética que favorece grandes corporações e silencia os impactos destrutivos dessa transição imposta. O que se vende como desenvolvimento sustentável não passa de uma narrativa vazia, incapaz de garantir uma mínima justiça socioambiental.
A Ocupação da Adepe e a Resistência Contra a Transação Energética em Pernambuco

Ocupação da sede Adepe – 17 de fevereiro de 2025.
A insatisfação das comunidades afetadas pelos projetos de energia renovável em Pernambuco culminou em uma série de mobilizações significativas. Em 17 de fevereiro de 2025, agricultores do Município de Caetés e indígenas do povo Kapinawá ocuparam a sede da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe), no bairro das Graças, Recife. O protesto foi uma resposta direta à política de transição energética da governadora Raquel Lyra.
Durante a ocupação, após quase seis horas de uma reunião tensa, as famílias agricultoras do Agreste e os indígenas Kapinawá conseguiram fechar um acordo histórico com o governo estadual. O governo comprometeu-se a não apoiar a instalação de aerogeradores em território Kapinawá e a não renovar a licença de operação do complexo Ventos de São Clemente, resultando no desligamento temporário de parte das turbinas. Além disso, foi acordada a criação de um comitê de crise, com a participação das comunidades atingidas, para elaborar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) referente ao complexo Ventos de Santa Brígida.
No entanto, em uma manobra, uma decisão judicial subsequente autorizou a retomada das operações do complexo Ventos de São Clemente, mesmo com a licença operacional vencida. O desembargador responsável pela liminar argumentou que a paralisação representava um “grave risco de dano financeiro” à empresa, que alegou prejuízos diários de R$ 600 mil e a possibilidade de vencimento antecipado de contratos de financiamento no valor de R$ 500 milhões. Essa decisão judicial ignorou a determinação anterior da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) e permitiu que o complexo voltasse a operar, desconsiderando as reivindicações das comunidades afetadas.
Também em resposta à ocupação da Adepe, uma comitiva formada pelo Governo de Pernambuco, Ministério Público, Defensoria Pública e Assembleia Legislativa realizou, nos dias 17 e 18 de março de 2025, uma escuta pública com cerca de 200 famílias agricultoras e indígenas Kapinawá impactadas pelos parques eólicos no município de Caetés. Durante a visita aos territórios, foram constatados os danos denunciados pelas comunidades: perda de terras, remoções forçadas, contratos abusivos, além de graves impactos ambientais e à saúde. Como desdobramento, o governo reafirmou os compromissos assumidos anteriormente.

Escuta por parte do poder público – Caetés (PE) – 17 de março de 2025.
Foi também anunciado que o novo limite mínimo de distanciamento entre os aerogeradores e as edificações será de 500 metros — uma medida insuficiente, mas que representa, ao menos formalmente, um reconhecimento da necessidade de regulamentação mais rigorosa frente aos impactos dos megaprojetos de energia eólica e solar. Essas decisões foram apresentadas como parte das respostas do governo à pressão popular exercida durante a ocupação da sede da Adepe, evidenciando a força da mobilização das comunidades atingidas.
Apesar das recentes movimentações institucionais, é evidente que a governadora Raquel Lyra tem buscado se esconder por trás de órgãos como a CPRH, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) e a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe), tentando deslocar para essas instâncias a responsabilidade pelas decisões mais polêmicas relacionadas ao avanço dos megaprojetos de energia no estado. No entanto, a população atingida não se engana: é o governo estadual, sob a liderança direta de Raquel Lyra, quem articula e sustenta politicamente a ofensiva do setor empresarial das energias renováveis sobre os territórios camponeses e tradicionais. Ao se omitir diante dos abusos cometidos por essas empresas — como contratos leoninos, desrespeito à consulta prévia e impactos socioambientais severos — a governadora revela seu alinhamento com a lógica do capital e sua conivência com a transformação da transição energética em mais uma ferramenta de expropriação e violência institucionalizada.
Referências
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. COP-28: Estado cria grupo para regulamentar licenciamento ambiental de energias renováveis. Recife, 2023. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2023/12/cop-28-estado-cria-grupo-para-regulamentar-licenciamento.html. Acesso em: 15 fev. 2025.
FIOCRUZ. Pesquisa analisa impactos da síndrome da turbina eólica. Agência Fiocruz de Notícias, 2025. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/pesquisa-analisa-impactos-da-sindrome-da-turbina-eolica. Acesso em: 28 fev. 2025.
MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO. Após participar de discussões do Grupo de Trabalho temático, CAO Meio Ambiente apresenta contribuições sobre regras para licenciamento. Recife, 3 jun. 2024. Disponível em: https://cao.mppe.mp.br/w/apos-participar-de-discussoes-do-grupo-de-trabalho-tematico-cao-meio-ambiente-apresenta-contribuicoes-sobre-regras-para-licenciamento. Acesso em: 15 fev. 2025.
Autor: Luis Antonio da Silva Soares
Revisão e correção: Gus Cabrera e Jô Rodrigues
Design: Diego Amorim