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Mar e Terra como Elementos Sagrados do Povo Wayuu: Transição Energética no Extremo Norte da Colômbia

Mar e Terra como Elementos Sagrados do Povo Wayuu: Transição Energética no Extremo Norte da Colômbia

O futuro, por vezes idealizado como redenção ou temido como destruição, está profundamente ligado às marcas do presente. Para o pensador indígena Ailton Krenak, o futuro é menos uma linha distante e mais uma continuidade do que sempre existiu. Ele vê os rios como seres ancestrais, atravessando tempos e mundos, sustentando a vida em suas múltiplas formas (Krenak, 2023).

Essa cosmo-percepção ressoa em La Guajira, uma região onde a terra árida e o mar do Caribe se encontram. Esse território, moldado pela ancestralidade e pela resistência do povo Wayuu, carrega em sua paisagem histórias e significados espirituais. Cada elemento natural conecta o passado ao presente, sustentando modos de vida que desafiam as imposições de um mundo  predatório.

Rio Ranchería
Crédito da imagem: Luis Soares (2024)

Os Wayuu vivem na fronteira com a Venezuela, onde o rio Ranchería, além de ser uma fonte essencial de água, é também um símbolo sagrado. Esse rio sustenta práticas culturais e modos de vida profundamente enraizados na relação com a terra. A organização social matrilinear dos Wayuu assegura a transmissão de tradições e a proteção de suas identidades seculares, fortalecendo a resistência cultural diante de ameaças externas que comprometem sua conexão espiritual e territorial.

Da mesma forma, a expansão de parques eólicos, parte da estratégia nacional de transição energética, também transforma territórios e impacta comunidades. Com um potencial eólico estimado em cerca de 15 gigawatts, esses projetos frequentemente geram conflitos sociais, incluindo expulsões, violência e divisões internas, ameaçando os modos de vida tradicionais e as conexões territoriais de diversas populações afetadas (Dialogue Earth, 2025).

A transição energética em La Guajira expõe um dilema contundente: será possível falar em sustentabilidade enquanto territórios ancestrais são transformados em zonas de sacrifício, e as vozes dos povos originários continuam silenciadas? Essa questão desafia diretamente as narrativas de “progresso” e “energia limpa”, revelando as contradições de um modelo econômico que perpetua desigualdades sociais e ambientais sob o rótulo de transição energética.

Buscando responder essa questão, entre os dias 18 e 22 de novembro de 2024, vivi uma experiência marcante em La Guajira, durante meu estágio de doutorado no Instituto de Pesquisas Regionais da Universidade de Antioquia. Cheguei à região em meio a uma temporada de chuvas intensas, que transformaram o deserto e suas paisagens áridas em cenários de enchentes inesperadas.

Territórios Ancestrais Wayuu em Conflito: Vozes de Resistência e a Luta pela Preservação Cultural e Ambiental

Em um dia de fortes chuvas em Riohacha, capital de La Guajira,  entrevistei Jazmin Romero Epiayú em seu escritório, onde lidera o Movimiento Feminista Niñas y Mujeres Wayuu. Logo ao chegar, chamou atenção o robusto sistema de câmeras de vigilância instalado no local, um reflexo das constantes ameaças que enfrenta devido à sua atuação em defesa dos Direitos Humanos, das mulheres e do território ancestral Wayuu. Desde o início da conversa, ficou evidente sua conexão profunda com o território, descrito como a essência espiritual e cultural do povo Wayuu. “Sem território, não somos ninguém”, afirmou Jazmin, destacando que o mar e a terra não são apenas recursos, mas parte integral da cosmovisão de sua comunidade, proporcionando sustento, harmonia e conexão espiritual.

Território Wayuu (Colômbia)
Crédito da imagem: Archivo Fuerza de Mujeres Wayuu

Jazmin teceu críticas contundentes aos parques eólicos instalados em terras Wayuu, que ela descreveu como “uma nova forma de colonização”. Esses projetos, segundo a líder, prejudicam a natureza e a cultura local, interrompendo rotas migratórias de aves, desarmonizando o ambiente espiritual e dividindo as comunidades. “Não podemos falar de transição energética quando exterminam um povo”, declarou. Para ela, o impacto ambiental e cultural dessas iniciativas é um reflexo de como os discursos de “energia limpa” muitas vezes mascaram práticas destrutivas.

A entrevistada também denunciou as consultas realizadas pelas empresas envolvidas nesses projetos, que ela considera processos manipulados. Segundo Jazmin, essas negociações oferecem benefícios temporários para dividir as comunidades e obter territórios sagrados. Apesar disso, há resistência, como a das “Guardianas del Viento”, um grupo de mulheres Wayuu que luta contra os despojos territoriais. “Somos guardiões por milênios, e isso não é novidade”, disse ela, reforçando o papel histórico das comunidades indígenas na preservação ambiental.

Jazmin criticou duramente os governos por priorizarem interesses corporativos em detrimento da proteção de territórios ancestrais, sob o pretexto da transição energética. Locais sagrados como Jepirachi, essenciais para a espiritualidade Wayuu, têm sido devastados por políticas que desconsideram as tradições indígenas. Seu discurso ressoou como um chamado à resistência e à preservação cultural, lembrando o valor simbólico de espaços como Japira, localizado no Cabo de la Vela, é um território que combina aridez e mar azul, abrigando um ponto de encontro entre vivos e mortos, onde se preserva a conexão espiritual e cultural da comunidade Wayuu.

No dia seguinte, as chuvas cessaram, novos encontros ganharam espaço. Foi então que conheci Ana Gonzalez, liderança tradicional,  cuja presença refletia a resiliência das mulheres Wayuu. Com a sabedoria de quem viveu as transformações do território em sua própria pele, Ana compartilhou histórias que revelam a força de sua ligação com a terra e o mar.e “A terra a consideramos a nossa mãe,” afirmou, explicando que as mulheres Wayuu são justamente o símbolo de coesão social e continuidade cultural. O mar, por sua vez, carrega um significado profundo, nutrindo tanto o corpo quanto as tradições espirituais e místicas do povo. “Nossa história está conectada com o mar,” comentou, destacando como essas narrativas atravessam gerações, mantendo viva a cultura.

Ressaltou os impactos negativos que os parques eólicos causam nos territórios indígenas. “Há muitos impactos que ocasionam mudanças na cultura das pessoas e na vida dos grupos indígenas,” declarou. Ela mencionou que cada pedaço de terra é significativo para os Wayuu, seja como local sagrado ou para atividades de subsistência, como o pastoreio de caprinos. “Não há um centímetro de terra que não tenha importância para os Wayuu,” frisou.

A entrevistada também abordou os processos de consulta prévia, ressaltando que, quando conduzidos sem respeito às normas culturais do povo Wayuu, geram divisões internas e conflitos. “As consultas não foram transparentes… a comunidade não teve a assessoria suficiente para tomar a melhor decisão,” afirmou. Ela destacou a importância de envolver os verdadeiros donos dos territórios de maneira efetiva, respeitando a organização matrilinear que é central à cultura Wayuu.

Essa mesma interseção entre cultura, espiritualidade e resistência emerge na fala de Alexander Iguarán, pescador artesanal e líder indígena Wayuu. Em uma entrevista online, ele reforçou o vínculo profundo entre seu povo e o território: “Somos seres do mar e da terra,” afirmou, destacando que esses elementos não são apenas fontes de sustento, mas constituem a essência espiritual dos Wayuu. Assim como os processos de consulta ignoram os saberes tradicionais, os grandes projetos energéticos ameaçam romper a conexão ancestral dos Wayuu com sua terra e mar, comprometendo não apenas sua subsistência, mas também sua identidade espiritual e cultural.

Como liderança, ele denunciou os impactos devastadores de projetos eólicos, solares e de transmissão de energia, que não apenas transformam a paisagem, mas fragmentam comunidades e colocam em risco modos de vida ancestrais. “Esses projetos não consideram nossa relação espiritual com a terra, o mar e o vento”, afirmou Alexander, explicando que, para o povo Wayuu, esses elementos não são apenas recursos, mas partes vivas de sua cosmovisão. Ele também criticou duramente os processos de consulta prévia realizados pelas empresas, chamando-os de manipuladores e desrespeitosos. Segundo ele, essas consultas frequentemente promovem divisões internas e exploram a vulnerabilidade das comunidades para obter acesso a terras sagradas.

Crédito da imagem: Miguel Iván Ramírez Boscán

Em suas palavras, ficou evidente que os desafios enfrentados pelas comunidades Wayuu vão além do ambiental. São questões de justiça social, que ressoam profundamente com as lutas no Nordeste brasileiro. Ele também destacou a necessidade de alianças transnacionais para fortalecer as resistências. “O que acontece na Guajira é muito semelhante ao que vocês vivem no Brasil. Precisamos compartilhar experiências e aprendizados para proteger nossos territórios”, concluiu.

As palavras de Alexander trouxeram à tona confluências entre as vivências da Guajira e do Nordeste do Brasil. A partir de sua perspectiva, ficou visível que o território não é apenas espaço físico, mas vida, identidade e espiritualidade. As chuvas que inicialmente interromperam meus passos não foram obstáculo, mas um convite a uma escuta mais profunda sobre as vozes que clamam por justiça e respeito à terra.

O Futuro Ancestral: Justiça na Transição Energética da América Latina

Ao visitar La Guajira e conhecer a luta dos Wayuu, percebi como suas histórias ressoam com os desafios enfrentados por comunidades indígenas e quilombolas no Brasil, especialmente no Nordeste. Em ambos os contextos, o discurso do progresso trazido por grandes projetos de infraestrutura de energia máscara a devastação cultural e ambiental. Territórios são tratados como recursos exploráveis, e não como espaços vivos, profundamente enraizados nas cosmovisões que sustentam a identidade e a espiritualidade desses povos.

Essa mesma crítica é central na obra de Joanna Barney (2024), que expõe as contradições de um modelo de transição energética em La Guajira. Barney evidencia como projetos eólicos offshore e de hidrogênio verde se sobrepõem a zonas ambientalmente sensíveis, como os pastos marinhos no Cabo de la Vela, essenciais para a biodiversidade e para a captura de carbono azul. 

Ao final dessa reflexão, retomo as palavras de Ailton Krenak, que ensina que o futuro não é uma ruptura com a ancestralidade.  Assim, os povos originários nos mostram que a terra, o rio e o vento não são meros recursos, mas parentes que compartilham conosco a vida e os ciclos da existência. É nesse vínculo com as raízes ancestrais que reside a possibilidade de construirmos um amanhã. O futuro, não é uma invenção tecnológica, mas uma memória viva, tecida entre o passado e o presente. O futuro é, de fato, ancestral.

Referências

BARNEY, Joanna. Las praderas de Pulowi: Contradicciones ambientales entre proyectos eólicos offshore e industria del hidrógeno verde, y el cuidado de los pastos marinos del Cabo de la Vela en La Guajira. Bogotá: INDEPAZ, Outubro de 2024.

DIALOGUE EARTH. Parques eólicos e comunidades indígenas na Colômbia. Disponível em: https://dialogue.earth/pt-br/energia/368855-parques-eolicos-comunidades-indigenas-colombia/. Acesso em: 02 jan. 2025.

KRENAK, Ailton. O futuro é ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

OLIVEIRA, L. D. de; TRALDI, M.; OCHOA, J. D. Z. Economic Geography, Energy Change and Sustainable Development: Reflections on Brazil and Colombia. In: MISHRA, M. et al. (Eds.). Climate Change and Regional Socio-Economic Systems in the Global South. Springer Nature, 2024. p. 55-64. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-981-97-3870-0_4.

OPEN DEMOCRACY. Mina de carvão El Cerrejón na Colômbia acusada de violações de direitos humanos e ambientais. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/mina-carvao-carrejon-colombia-acusada-direitos-humanos-ambientais/. Acesso em: 02 jan. 2025.

Autor: Luis Antonio da Silva Soares

Revisão e correção: Gus Cabrera e Jô Rodrigues

Design: Diego Amorim